Introdução
Diante de crises do
sistema capitalista, como o “estouro” da bolha imobiliária ocorrida em 2008,
Harvey (2014) coloca em discussão 17 contradições do sistema capitalista. O
autor põe em discussão os fundamentos das crises do sistema capitalista e como
isso se reflete à sociedade, elaborando pressupostos a uma vida
pós-capitalista.
Harvey
propõe, com base em Karl Marx, que se deve analisar as contradições para então
elaborar-se a análise das crises. Já que ele entende o sistema capitalista como
cíclico e que as crises sempre irão existir dentro do sistema capitalista. Para
isso ele discute e propõe 17 contradições.
Sobre
o valor de uso e de troca (bônus track)
A primeira
contradição que Harvey apresenta se refere ao valor e uso e ao valor de troca.
De acordo com o autor, a mercadoria tem um valor de uso e um valor de troca.
Harvey
sustenta que o valor de uso se refere a uma necessidade básica para a
manutenção da vida humana, por exemplo, o ato de comer para saciar a fome.
Enquanto que o valor de troca se refere à quantidade monetária para se adquirir
algo. Seguindo o exemplo, é o quanto seria necessário ter-se de unidade
monetária para saciar uma necessidade fundamental, como a fome.
Harvey
aposta, seguindo a sugestão de Marx, que há uma contradição entre valor de uso
e valor de troca. O problema está no momento quando se “financeiriza” o valor
de uso, potencializando o valor de troca em detrimento do valor de uso.
O
autor demonstra o exemplo da especulação imobiliária sobre as moradias. Para
ele, o valor de troca passou a ser predominante na sociedade capitalista. Já
que as pessoas começaram a tratar a moradia não mais como uma necessidade de
morada, mas como poupança ou investimento de curto e longo prazos. Também
argumenta para o “olhar” sobre a oferta e demanda, uma vez que o valor de uso
pode se tornar escasso quando da pouca oferta, auferindo, assim, valores
grandes sobre a troca diante da pouca disponibilidade da mercadoria, por
exemplo.
Sugere-se
que deve haver um equilíbrio entre valor de troca e valor de uso, mas o que
ocorre é que o sistema capitalista tende a especular e a financeirizar tudo.
Dessa forma, o autor propõe que se deve focar numa proposta para o valor de
uso, tentando reduzir o papel especulativo do valor de troca sobre o valor de
uso.
Sobre
o crescimento acumulativo exponencial sem fim
Harvey coloca na
contradição 15 que a remuneração para o capital aumenta e que esse crescimento
assume a forma de um gráfico exponencial com o passar do tempo. Ele coloca que
o capital tem buscado taxas de remuneração cada vez mais altas. É cada vez mais
emblemático que, considerando o exemplo das proporções de remuneração apontadas
pelo autor, por exemplo, se um investimento na década de 1970 rendia cerca de 600
bilhões de dólares, hoje é preciso encontrar canais lucrativos de investimentos
na ordem de 3 trilhões de dólares e que daqui a 20 anos, mais ou menos, será
preciso taxas de lucros da ordem de 6 trilhões para os investimentos.
O
autor aponta que o crescimento exponencial e a acumulação sem fim são um
problema, dado que cada vez mais teremos maiores números na captura de
remunerações por renda, ao invés de lucros ou taxas atrativas de investimentos
na produção de coisas materiais, como alimentos, que nos dias atuais já não são
tão atrativos de seinvestir financeiramente como eram na década de 1970.
O
autor argumenta sobre a teoria de Malthus, na qual colocava que a taxa de
população mundial tende a crescer a um ritmo exponencial ou geométrico,
enquanto a produção de alimentos num ritmo aritmético. Harvey coloca que
Malthus não se atentou para o progresso tecnológico na agricultura e nem pensou
na possibilidade da diminuição demográfica. No entanto, Harvey trabalha um
ponto interessante do pensamento de Malthus: que é colocar para análise a
evolução demográfica com a evolução da acumulação de capital. Harvey coloca o seguinte problema: nos
primeiros momentos da história do capital, o rápido aumento da população ou de
uma vasta reserva de trabalho assalariada inexplorada e ainda não urbana, sem
dúvida, ajudou a manter uma rápida acumulação de capital (Harvey, 2014, p.
227), mas que, por outro lado, por exemplo, a taxa de crescimento da economia
não tem acompanhado a taxa de desemprego e a taxa de decrescimento da população.
A partir disso, Harvey demonstra que o crescimento da acumulação de capital se
apoiará cada vez menos no crescimento demográfico e mais sobre a taxa de
desemprego.
Mas,
se o capital se apoia no mais valor e na busca por benefícios, qual seria a
razão e lógica atual para se obter mais valor sobre o que se tinha no
princípio? Harvey aponta que a resposta está na privatização dos ativos
públicos, na retração dos direitos sociais e na participação privada no
provimento dos serviços públicos. Para o
autor, a acumulação exponencial só se mantém na medida em que o capital vai
cada vez mais penetrando na vida social e econômica das pessoas. Por outro
lado, mudanças significativas de consumo por parte da população têm sido
presenciadas, já que os bens de consumo são cada vez mais projetados com uma
certa obsolescência programada.
De
acordo com o autor (p. 235 – 236), quando a rentabilidade do investimento nos
ativos produtivos caiu na década de 1970 houve a mobilização de capitais para as
instituições creditícias, que cederam empréstimos a países do terceiro mundo.
Naquele momento, a ideia era que o capital excedente encontraria remunerações superiores
aos disponíveis no mercado, Harvey denomina esse capital rentista de classe
parasitária. Qual então o perigo dessa contradição para a sociedade? Harvey
aponta que os recursos naturais são finitos e que o consumo não pode crescer de
forma fictícia ou descolada da realidade de disponibilidade na natureza. Além
disso, a população necessita de bens materiais básicos para a vida. Dado que o
capital busca proporções de remuneração cada vez maiores, é tenebroso pensar no
abandono de investimentos no capital industrial e o soerguimento da classe
parasitária.
Sobre
tecnologia, trabalho e disponibilidade humana
Nessa
contradição, Harvey demonstra a contradição fundamental entre o uso da
tecnologia aplicada ao trabalho com a disponibilidade humana para o trabalho.
Os benefícios do desenvolvimento tecnológico não têm sido compartilhados a todos
os habitantes do planeta e que, na verdade, o objetivo do desenvolvimento
tecnológico é a experimentação de um assombroso aumento da produtividade do
capital.
Harvey
coloca que as empresas capitalistas estão submetidas a uma competição mútua, em
que elas trabalham para elevarem suas eficiências e produtividades individuais,
tentando obter benefícios maiores que as suas competidoras (p. 102) no mercado
e que os resultados disso são saltos tecnológicos de distintos setores. No
entanto, Harvey atenta para a questão do monopólio e da propriedade
intelectual, como os royalties.
Dito
isso, Harvey coloca que o capital tem sido beneficiado do avanço tecnológico no
capitalismo, em que ele se alimenta ferozmente por meio da destruição criativa
das tecnologias - inovação. Para o
capital, a tecnologia se converteu num campo especial da atividade empresarial,
donde se sucederam buscas pela maior invenção e inovação nos sistemas de
produção, circulação, consumo, governança, poder militar e vigilância (p. 104).
De acordo com o autor, desde meados do século XIX a compreensão científica há
experimentado os avanços tecnológicos como o microscópio e o telescópio, mas
que, por outro lado, as novas tecnologias têm se apropriado cada vez mais dos
conhecimentos científicos e que se há promovido uma verdadeira inserção desses
no núcleo da atividade empresarial para o impulso da inovação tecnológica.
Harvey
fala que o controle sobre o processo de trabalho e o trabalhador tem sido
decisivo para a capacidade do capital de manter a rentabilidade e a acumulação
de capital (p. 111). Durante toda a história, o capital há inventado, inovado e
adotado formas tecnológicas cujo o principal propósito é aumentar o controle
sobre o trabalho. Assim, otimização e robotização são interiorizados no
processo de produção das mercadorias, em vias de substituir o trabalho vivo
pelo morto. É por essa via que Harvey coloca que os robôs não se queixam do
pagamento de salários e nem do tempo de trabalho, por exemplo, mas que, por
outro lado, robôs não têm a propensão a consumir mercadorias.
Harvey
aponta que o desastre econômico pode ocorrer caso não haja população suficiente
a comprar as mercadorias produzidas pelas empresas. A competição entre empresas
por meio da inovação tecnológica e pela redução dos custos de produção tem, de
certa forma, eliminado diversas profissões e empregos e, por outro lado,
estimulado a criação de diversas outras. No entanto, ao citar Henry Ford, Harvey
demonstra que: permitir que os empregos sejam eliminados aos montes sem nenhum
plano concreto de recriação ou mitigação pode condenar o sistema capitalista ao
desastre (p. 113). Já que os consumidores impulsionam o mercado, se uma fração
substancial de empregos for destruída de onde virá a demanda que movimenta a
circulação do mercado?
É
preciso se atentar para o surgimento de uma parcela revoltosa da sociedade que,
sem disponibilidade de emprego por parte das empresas, pode vir a ser um problema
ao funcionamento do capitalismo. Também, a contradição entre produção de valor,
por um lado, e inovação tecnológica que tente salvar o trabalho vivo em grande
escala, por outro, há encontrado um território cada vez mais perigoso ao se
ver-se afetado por uma crescente parcela da população sem previsíveis
oportunidades de emprego; o que é um problema para a reprodução do capital.
A
propriedade privada e o Estado capitalista
Harvey começa a
contradição abordando a ideia de que o Estado faz a mediação das relações entre
consumidores e vendedores, uma vez que o valor de troca pressupõe a garantia da
existência dos direitos de propriedade individual sobre as mercadorias e sobre a
moeda. Portanto, o papel do Estado aparece, por exemplo, como garantidor do
direito de propriedade privada.
A
imposição e/ou consenso dos direitos de propriedade privada depende da
existência de poderes estatais de coerção e do ordenamento do sistema jurídico,
que codifica e define uma série de obrigações contratuais. Dessa forma, a
sociedade está submetida ao poder coercitivo do Estado por meio do monopólio do
uso da força. O que caracteriza dizer que as ações do Estado são ancoradas num
sistema jurídico ou contrato socialmente imposto ou aceito pela sociedade,
sendo a vigência desse sistema garantida através do Estado. Cabe ao Estado, por
meio do poder coercitivo, definir, regular, codificar e dar forma legal aos
direitos e vínculos sociais que caracterizam uma determinada sociedade (p. 56).
Assim, o autor coloca que o direito de propriedade individual está alicerçado
numa cultura individualista da sociedade.
Diante
disso, o autor lembra que, além do sistema jurídico, o Estado tem de governar e
administrar a moeda e os interesses da população. Ao largo de colocar o Estado
como mediador na resolução de problemas referentes às falhas de mercado, o
autor coloca em pauta que tanto a burguesia quanto o proletariado têm,
eminentemente, encampado o discurso do direito à propriedade individual, uma
vez que é garantida, aparentemente, a posse e a acumulação de bens materiais.
O
problema, seguindo o raciocínio de Harvey, é que o Estado capitalista se
compromete a fazer manobras que beneficiem a acumulação de capital. Dado que,
desde o aparecimento do primeiro Estado-Nação do século XV em diante (p. 58), a
construção do Estado tem se apoiado na necessidade por recursos econômicos para
garantir-se belicamente na ampliação ou manutenção de seu território. Assim,
nos dias atuais, a riqueza e o status de poder se convertem num instrumento
crucial para o posicionamento geopolítico e geoeconômico de influencias no mapa
mundial, onde o poder competitivo das empresas no mercado está atrelado com a
gestão do monopólio do sistema monetário e fiscal do Estado.
Referência
bibliográfica
HARVEY, D. Diecisietecontradicciones y el fin del
capitalism. Quito - Equador: Instituto de Altos
EstudiosNacionalesdelEcuador (IAEN), 2014, 296 pp.